A farsa do “Foco no Cliente”

Ah, o “foco no cliente”! Muitas empresas adoram explicitar com palavras e imagens bonitas que elas tem foco nas necessidades do seu cliente.

Mas você, que com certeza, já foi cliente, deve saber muito bem que essa ideia se prova com atitudes, e não com palavras.

Nesta semana a Amazon do Brazil cometeu um erro em um de seus cupons de desconto e, por algumas horas, clientes conseguiram utilizá-lo de forma cumulativa, a ponto de levar alguns produtos (no geral, livros), de graça. Isso fez com que a Amazon se tornasse um dos trending topics do Twitter no Brasil. Mas um dia depois ela voltou aos holofotes da rede social, porém com uma hashtag bem diferente:#AmazonNoProcon. Como já era de se esperar, ela começou o cancelamento em massa dos pedidos que fizeram uso da brecha.

A alegria dos clientes se manifestando no Twitter…

A empresa, em seus valores centrais, diz que é “obcecada pelos clientes”. Mas a pergunta que fica é: onde está o “foco no cliente” nestas situações? Qual é o custo futuro de perder um cliente, versus o custo de assumir um erro e preservar quem nos sustenta?

É sobre isso que vamos conversar neste breve artigo.

O dia em que aconteceu comigo…

Estou vivendo uma fase muito curiosa da minha vida. Não sei dizer se todos passam por isso, ou se uma maioria passa (acredito que ao menos os mais nerds devem passar): aquela fase em que você começa a comprar novamente as coisas que você tinha na infância, ou aquelas que você sempre quis, mas seus pais não puderam te dar. Isso não significa necessariamente que todas elas sejam coisas de criança, ou que é errado um adulto querer ter. Mas começam a surgir em casa alguns Nintendo Game Boy, Nintendo 64, jogos de tabuleiro. E no começo dessa fase, no final de 2020, eu fui atrás de fazer minha primeira compra de uma outra boa lembrança da infância: um deck de cartas do Pokémon Trading Card Game.

Pesquisando na internet, encontrei uma oportunidade de compra sensacional, no marketplace do Carrefour. Era tudo o que eu queria: um preço incrível, em um lugar confiável. O conjunto vinha com dois decks, pelo preço de menos de um! Um deck normalmente custava de R$39 a R$49 na época, e os que estavam nesta promoção, além de serem produtos que estavam saindo de linha (o que pode torná-los itens raros no futuro), estavam por menos de R$20.

Comprei na hora. Ansiedade a mil por hora. Era só aguardar a entrega. Tudo correu muito bem.

Até o dia em que recebi o pacote.

Ao abrir, o que eu encontro dentro?

Uma caixa de canetinhas hidrográficas. Aquelas que a gente usava na escola.

As belezuras que eu estava prestes a receber.

Entrei no site do Carrefour, mas o produto seguia aquela tendência: está no site de uma empresa, mas é vendido e entregue por outra. Observando, vi que o que eu havia comprado era de responsabilidade da Olist. Mas como na nota fiscal, estava o nome de uma loja de brinquedos da cidade de Marília-SP, e a Olist é mais um intermediário na situação, resolvi entrar em contato direto com a loja.

O atendimento foi via WhatsApp. A primeira coisa que me responderam era que eu devia ver com a Olist, pois era responsabilidade deles. Ok, lá fui eu.

O site da Olist, seguindo outra tendência das empresas, tornou um parto encontrar onde raios conseguir falar com um ser humano da empresa. Ao menos não tinha a porcaria de um chat com um robô, mas foi tão difícil encontrar um botão para entrar em contato que acho que nem o programador daquilo sabe onde fica.

Depois, entrei em contato com o Carrefour. Pediram foto do produto, da nota fiscal, da caixa e disseram que iam entrar em contato com a loja responsável e em até 5 dias úteis eu teria a resposta. Em seguida, fui atormentar novamente a loja real vendedora do produto.

As respostas foram as mais secas possíveis. Pediram para que eu mandasse foto do produto, da nota fiscal e da embalagem também, além de foto de um documento. E essa foi a última mensagem deles que eu recebi. Nunca mais mandaram nada.

Uma semana depois, a Olist entra em contato, pedindo desculpas, solicitando a devolução do produto, que foi um erro no cadastro do item, e confirmando que iriam me reembolsar e ainda fornecer um bônus de R$20 reais para gastar.

Aparentemente, tudo terminou bem, não?

Do ponto de vista das empresas envolvidas, pode ser que sim. Mas daquele dia em diante, eu nunca mais comprei nada anunciado como “vendido e entregue por Olist”. E recomendei pra minha irmã, que fez o mesmo algumas vezes, após ter uma experiência de comunicação horrível com eles no Mercado Livre.

A loja de Marília-SP economizou, no curto prazo, uns R$50 ao não pedir desculpas e enviar o produto que eu realmente havia comprado. A Olist, não sei quanto. Mas perderam um cliente, e isso geralmente tem um custo imensurável. Eu queria o produto, não o meu dinheiro de volta, e muito menos mais dinheiro. Se eu quisesse o dinheiro mais do que o produto, eu não teria gasto!

Foco no cliente e a complacência

E aí? Houve foco no cliente? Ou o que vimos foi a clássica atitude das empresas ao cometer um erro perante o cliente: tentar enrolar este o máximo possível para diminuir a pancada financeira do erro no curto prazo? No caso da Amazon, você poderia se perguntar, caso fosse um gestor em uma empresa tão rica “Ah, e daí? Faturamos milhares de dólares por segundo, e a base de clientes é gigantesca.” E realmente, para a Amazon o impacto provavelmente será minúsculo caso ela perca estes clientes que estão tendo seus pedidos cancelados. É uma empresa que, na consulta que fiz hoje, está ganhando $22.044 por MINUTO [1]. No último trimestre, a receita foi de mais de $830.000, também por minuto [2]. Já para uma empresa menor, isso pode ser bem mais grave. Mas existe um efeito que pode ser ainda mais grave do que o financeiro:

Diminuir o impacto dos erros dos processos, contornando estes da forma mais vantajosa para a empresa, pode diminuir a visão das pessoas sobre a necessidade de melhorá-los.

Se dói só um pouco e a gente sempre se safa, para quê consertar? Para quê buscar a causa raiz? Por que se preocupar?

Mas de furinho em furinho, de gota em gota, um pequeno vazamento em uma torneira ou em uma caixa d’água se torna um rombo na conta. Se o erro dói pouco, ou de pouco em pouco, as empresas ignoram a causa raiz do problema. E elas fazem de tudo para que qualquer erro de processo doa pouco para o lado dela, não importando o quanto vai doer para aquele anônimo que resolveu comprar com ela. Mas a perda de um cliente é um dos custos imensuráveis que o Dr. Deming comenta em seus trabalhos. Aparentemente, custos não mensuráveis não assustam as empresas. Mesmo que a falta destes clientes não te mate, isso significa menos receita, menos lucro, menos capital para poder manter o negócio saudável. E um negócio que fecha ou tem que fazer demissões significa menos riqueza sendo gerada, diminuição no poder de compra, o que impacta outros negócios, aumenta desigualdade, etc. O efeito é sistêmico.

Líderes começam o trabalho pelo cliente. Eles trabalham vigorosamente para ganhar e manter a confiança do cliente. Por mais que líderes prestem atenção nos concorrentes, eles ficam obcecados pelos clientes – um dos valores da Amazon em seu site global de recrutamento

Toyota com toda certeza não é uma empresa perfeita. Nenhuma é. Se perfeição fosse possível, não seria necessária a existência do conceito de kaizen. Mas ela tem um exemplo muito interessante de foco no cliente, em um caso que aconteceu com sua divisão de carros de luxo, a Lexus.

Um dos modelos da marca apresentou um problema de desgaste excessivo dos pneus. Isso aconteceu porque, na tentativa de tornar o rodar do veículo mais macio, ela equipou este com pneus muito macios. Mas o modelo era de um peso considerável e isso fez com que os clientes passassem a reclamar de que eles estavam ficando gastos muito rápido. O problema fez com que o índice de reclamações de clientes da Lexus, que era de 1%, subisse para 5%.

O que a marca fez?

Enviou um pedido de desculpas acompanhado de um vale-compras de $500 para todos os clientes que haviam comprado aquele modelo [3]. E quando digo todos, isso inclui até aqueles que já nem tinham mais o veículo. Imaginem o impacto financeiro disso no curto prazo. Mas a atitude é a diferença entre saber que também existe longo prazo, e que um custo mensurável é muito menos assustador do que um imensurável. E no Brasil, já tivemos uma atitude semelhante em uma situação semelhante, onde a Magalu errou e liberou vários cupons de R$1000, mas encarou o erro, honrando as compras dos clientes.

Magalu mostrando para a Amazon como é que se faz.

É nestas situações em que você descobre se o “foco no cliente” é uma farsa ou não naquela empresa. É somente quando há a decisão de deixar um erro seu doer mais no seu cliente do que em você, que foi quem errou, entre seu bolso e a satisfação dele, que acontece a prova de fogo. O meu caso foi com um hobby, algo que não bagunçou nenhuma área ou coisa realmente importante da minha vida. Agora você imagine o impacto para um cliente quando um produto ou serviço é questão de vida ou morte, ou pode levar a uma perda grande de moral ou dinheiro.

O modo como você trata o cliente quando não lhe deve nada, como você trata alguém que não pode se defender – esse é o teste definitivo de caráter. – Sr. Jim Press, ex-COO da Toyota

Ironicamente, um dos livros favoritos sobre negócios de Jeff Bezos é Lean Thinking: Banish Waste and Create Wealth in Your Corporation. Seria este um atestado da incompetência do Lean em traduzir corretamente o Sistema Toyota de Produção, e/ou mais um atestado (fora os que ele já tem, sobre a questão dos abusos sofridos pelos funcionários da empresa) de que o Sr. Bezos segue fazendo o que a maioria dos ocidentais gosta: pegar as partes do Lean que mais interessam ao modo de pensar tradicional?

Um grande abraço, muito obrigado por ler mais este artigo, e até a próxima!

Algumas Referências do Texto

[1] Profit per Second

[2] How much revenue tech giants like Amazon and Apple make per minute

[3] O Modelo Toyota – 14 Princípios de Gestão do Maior Fabricante do Mundo

  • janeiro 28, 2022
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