Como identificar os impostores do Lean?

Among Us. Se você nunca jogou, deve ao menos conhecer alguém que já. O jogo que virou febre em 2020 tem uma premissa bem simples: somos um grupo de astronautas, e nossa nave está quebrada no meio do espaço sideral. Nosso objetivo é completar algumas tarefas de reparo e voltar para a civilização. Mas há um problema: dentro do grupo há um impostor; uma pessoa cujo objetivo é conseguir assassinar os outros membros sem ser descoberto.

Na dinâmica do jogo, toda vez que alguém do time dos “inocentes” encontra um corpo ou uma atitude suspeita, esse alguém pode chamar uma reunião de emergência com todos os membros. Nessa reunião, que acontece via chat no jogo, a ideia é discutir e votar quem pode ser o impostor. Aqui, ser um bom mentiroso ou ter uma boa habilidade de persuasão são os grandes determinantes.

E no Lean, assim como em Among Us, é possível identificar possíveis “impostores” (entre aspas, pois nem todos agem assim propositalmente) que estão assassinando o kaizen e minando a nossa jornada para consertar a nave empresa, simplesmente observando suas falas. Eles falam bonito, de forma eloquente, convincente, e muitas vezes, seus currículos são impressionantes. Mas no meio dessas falas, eles revelam traços de que precisam mudar, refinar, ou cuidar melhor de suas crenças sobre o kaizen, para quem não se tornem legítimos impostores no assunto.

Coisas que um bom praticante do Lean nunca fala

Não é nada fácil e nem rápido se tornar um bom praticante do Lean. A grande verdade é que nunca nos tornamos um, pois sempre temos o que melhorar. Não há uma linha de chegada e, se definirmos uma, estaremos condenados. A exigência em cima dessa figura é enorme, e toda essa exigência deveria vir dela própria, olhando para si mesma sempre como não sendo boa o suficiente, assassinando seu ego todos os dias. E esse processo árduo, gratificante, e indescritível, como a jornada de um aprendiz para se tornar um artesão habilidoso, passa por observar e mudar o modo como nos comunicamos: você deve ser uma pessoa atenta e detalhista a ponto de melhorar o seu modo de falar. A grande maioria do que aprendemos na teoria e na prática sobre gestão, ao longo de décadas, é inútil dentro do Lean. Por isso, é importantíssimo monitorarmos certos vícios adquiridos na fala e comportamentos. Abaixo, a lista de falas que qualquer pessoa envolvida no assunto, especialmente, se estiver liderando, nunca deve utilizar.

“Programa 5S, Programa Lean, Programa…”: o Lean não é uma cerimônia especial, uma programação, um evento, nem nada com início, meio e fim, mas sim, o sistema de gestão, nosso modo de fazer negócio. Não existe uma fronteira, algo do tipo “o kaizen vai até aqui.” e depois muda ou não se aplica, seja essa fronteira algo no tempo ou um setor.

“Foco em resultados”: Desprezar o processo pode levar a caminhos inadequados (antiéticos, destrutivos, etc.) para o resultado e causa falta de conhecimento e entendimento sobre o que levou àquele resultado, impedindo o compartilhamento horizontal da ideia (yokoten). Assim, tenderemos a reinventar a roda e aprender pouco ou quase nada. Lembre-se: “o processo certo trará os resultados certos.” No LinkedIn você consegue encontrar líderes “Lean” com dezenas de anos de experiência comercializando cursos de Lean e, ao mesmo tempo, cursos de alguma coisa de liderança orientada a resultados. Ou ele quer atender aos dois públicos, sem se preocupar com o resultado para o mundo dos negócios, ou simplesmente precisa de kaizen na sua compreensão do assunto.

“Maximizar”: um líder Lean deve ter em mente que a ideia de melhorar continuamente significa não haver linha de chegada. “Maximizar” ou “Otimizar” passam a ideia de que existe um ponto suficiente.

“Vencer”: isso sugere que precisam existir perdedores para termos sucesso (pensamento de soma-zero, incompatível com o kaizen), e implica que resultados onde alguém sai prejudicado são aceitáveis na empresa. Também transmite a ideia de linha de chegada, mas já sabemos que a melhoria é contínua.

“Data-driven”: uma empresa Lean é baseada em fatos. Devemos sempre nos fundamentar em informações dos dois tipos: qualitativas e quantitativas. Elas não são excludentes, mas sim, complementares.

“Boas práticas”: o termo passa a ideia de que existe uma forma definitiva de fazer algo, contrariando a ideia de melhoria contínua.

Resposta/Solução”: a fala é um limitante para a criatividade das pessoas, e o kaizen é movido à criatividade. Você mata a característica que você mais precisa do seu time. Sempre existe mais de uma maneira de chegar a uma contramedida para um problema ou situação. Utilize o termo contramedida.

Jogar o jogo”: negócios não são um jogo. Sempre lembre-se que a vida das pessoas e o progresso da sociedade depende de relações sustentáveis nos negócios. Jogos implicam vencedores e perdedores, e devemos fugir dessa mentalidade anti colaboração. Isso viola o princípio do Respeito pelas Pessoas. O mesmo vale para o termo jogo dos negócios.

“Execução perfeita/impecável”: nada é perfeito. Podemos somente almejar chegar próximo da perfeição e melhorar continuamente. A fala é inconsistente com a ideia de kaizen. Uma fala que costuma ser vista na comunidade do Lean Six Sigma, talvez pelo apelo exato.

“Falhar não é uma opção”: uma fala que atrasa o progresso e o aprendizado, pois as pessoas vão ficar presas em tentar uma execução perfeita. Ela também incentiva uma cultura que tem aversão ao risco, a experimentar coisas novas, mais uma vez, criando inconsistência em relação à ideia de kaizen.

“Devemos nos manter na nossa área de competência”: funciona como desculpa para manter as barreiras entre setores, impedindo o pensamento sistêmico. Finanças deve entender e colaborar com Engenharia, Engenharia com Vendas, e assim por diante, em uníssono. Isso promove um ambiente onde é aceitável ter processos ruins e que não melhoram, e acaba com a ideia de trabalho em equipe em prol do cliente.

“Quick-win”: no kaizen, processo e resultado importam, nunca somente o resultado. Quick win implica foco em resultados. Desprezar o processo pode levar a caminhos inadequados para o resultado ou até mesmo, falta de conhecimento e entendimento sobre o que levou àquele resultado, impedindo o compartilhamento horizontal da ideia (yokoten). Substitua “Nós precisamos de uma quick win.” por Nós precisamos de kaizen.”

“Precisamos monetizar esse produto”: o cliente decide o que é útil ou não, através da percepção de valor. Substitua por “Precisamos melhorar o valor que entregamos aos nossos clientes.”

Estes são apenas alguns exemplos. A lista pode ficar maior:

  • Estamos em um negócio de margem baixa.”
  • “Eu vou responsabilizar você por isso.”
  • “O que é medido, é melhorado.”
  • “Mudar ou morrer.”
  • “Este produto é nossa vaca leiteira.”

Um desafio para você praticar junto comigo: tente pensar em por que um praticante do Lean também não deveria, na maioria dos casos, utilizar os termos abaixo:

  • “Sustentável.”
  • “Incentivar.”
  • “Sinergia.”
  • “Escala/Escalável.”
  • “Projeto.”

Isso é realmente importante, ou frescura?

A cultura de uma empresa é moldada através das atitudes dos seus líderes, e parte dessas atitudes se manifesta através da fala. A comunicação humana é algo fascinante e complexo. Será que é frescura melhorar seu modo de falar, para que ele reflita o ambiente que você precisa criar? Olhe para si mesmo, e tente identificar como você reage a certas falas e você terá um gostinho da importância.

Não se ofenda

Nem todos são impostores propositalmente – por isso eu utilizei o termo entre aspas no início do texto. Muitos cometem estes erros simplesmente por falta de conhecimento, ou por crenças formadas devidos aos muitos anos de experiências na gestão e liderança tradicional, e isso não é nenhum pecado. Por isso, este texto, apesar do tom, não é com o objetivo de ofender, mas sim, de despertar de forma mais intensa o kaizen em você.

Você é bom, mas não tão bom assim.

Sensei Chihiro Nakao

Grave esse elogio – um tanto esquisito e simples, mas carregado de um significado profundo – em sua mente e seu coração, e nunca deixe nada e nem ninguém apagar. Lembre-se dele toda vez em que cair na armadilha de acreditar que já é bom o suficiente.

Gostou do texto? Então aproveite para discutir ele com seus amigos e colegas de jornada. Com certeza vocês irão extrair ideias para solidificar e corrigir as falhas que estão impedindo que vocês extraiam cada vez mais o potencial gigante da cultura kaizen.

Grande abraço, e até a próxima!

Referências Bibliográficas

Emiliani, M.L. The Language of Lean. Bob Emiliani Blog, 6, Janeiro, 2014. Disponível em: https://bobemiliani.com/the-language-of-lean/. Acesso em: 20 de Novembro de 2020.

Emiliani, M.L.; Herscher, M.; Wood, R. Shingijutsu Kaizen: The Art of Discovery and Learning. 1ª Edição. CLBM LLC, Outubro de 2015.

  • novembro 20, 2020
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