Um recado do mestre

Hoje, logo pela manhã, eu tive a sorte e a felicidade de dar de cara com um post do professor Bob Emiliani que era um grande presente (mais do que os posts dele já costumam ser) para a comunidade do kaizen.

Ontem, infelizmente, um dos nomes mais importantes da história do conhecimento sobre o Sistema Toyota de Produção e das ideias japonesas de gestão nos deixou. O Sr. Norman Bodek, pioneiro e grande responsável pela nossa chance de ler a tradução das maiores e mais importantes obras direto dos originadores das ideias, faleceu, após uma vida dedicada a melhorar a humanidade através das ideias desse sistema de produção e de gestão focado no ser humano. Deixo aqui o meu agradecimento ao Sr. Bodek por ter me dado a oportunidade de ler os melhores livros já escritos sobre a minha paixão e por ter feito parte da minha rede (ele mesmo enviou o convite no LinkedIn, e eu fiquei igual criança sem acreditar), mesmo que apenas em seus últimos dias de vida.

Neste post que eu comentei na abertura do artigo, como uma forma de homenagem e reverência ao Sr. Bodek e sua esposa japonesa, que ajudava nas traduções, o professor Bob Emiliani disponibilizou na íntegra o prefácio original da versão japonesa de 1978 do livro Sistema Toyota de Produção, escrito pelo Sr. Taiichi Ohno. Nas edições norte-americanas, de 1988, e que foram base para a edição brasileira, esse prefácio foi substituído por outro. E este é só um dos exemplos de quanta riqueza de informações nós já perdemos até hoje nas nossas edições de livros.

No último ano, depois de um tempo desconfiando de que havia algo errado com o Lean, minhas suspeitas se confirmaram após a leitura de Critique of Lean – Pathway to Improvement. Desde então, minha reverência pela sabedoria japonesa apenas aumentou e minha abordagem ao Lean passou a ser a de voltar às origens, e reconhecer que nossa interpretação apenas evoluiu para pior conforme fomos moldando o Sistema Toyota de Produção aos nossos gostos e corrompendo o propósito geral do sistema. Para quem apenas se preocupa com resultados e lucro, tudo o que eu faço não passa de uma bobagem, frescura e perda de tempo. Mas se você, assim como eu, se preocupa em tornar o mundo um lugar melhor para se trabalhar e viver, encante-se e entregue-se ao processo de desvendar dia após dia o que havia e há na mente da Toyota. Por isso, hoje eu trago para você a tradução deste prefácio inédito, com alguns comentários nos trechos que foram destacados na postagem original do LinkedIn. Divirta-se!



Foi no outono de 1973, no momento da Crise do Petróleo, quando nosso Sistema Toyota de Produção começou a chamar a atenção. Durante o período de baixo crescimento econômico que se seguiu, a Toyota Motors se destacou por causa de sua relativa alta performance e resistência à crise econômica.

O Sistema Toyota de Produção nasceu do destino da indústria automobilística japonesa após a Segunda Guerra Mundial; mais especificamente, a demanda do mercado por “produção em pequenos lotes e alta variedade”. A indústria automobilística ocidental já havia estabelecido a produção em massa; para sobreviver a este ambiente, nós conduzimos um processo de tentativa e erro e finalmente chegamos a um sistema de produção e também, a um sistema de controle da produção.


Comentário: a Toyota aprendeu de forma orgânica, todos os dias, ao longo de décadas (e segue aprendendo), aquilo que insistimos em copiar e colar de forma mecânica e adaptada ao nosso gosto da noite para o dia e sem querer errar. Não à toa, ela segue imbatível com seu sistema de gestão.


O propósito deste sistema de produção é aumentar a eficiência da produção através da completa eliminação de todos os tipos de desperdícios na empresa. Ele é um ativo da Toyota construído através da história, desde Sakichi Toyoda até Kiichiro Toyoda e o presente.


Comentário: ainda hoje, mesmo após mais de 40 anos, ainda temos de forma dominante a visão limitada do Sistema Toyota de Produção como um método de produção, quando na realidade, é um sistema de gestão geral para a empresa. Os desperdícios que acontecem na produção ou na prestação de serviços tem origem no nosso modo de enxergar os negócios, liderar pessoas e gerenciar processos, e não somente nos processos. A forma como tratamos as pessoas envolvidas no nosso negócio – clientes, funcionários, comunidade, investidores, etc – é uma das maiores causadoras de desperdícios e aumento de custos.


Desde o começo, nossa intenção era desenvolver um sistema original, que fosse adequada para o ambiente econômico do Japão. Nós utilizamos termos como “kanban” e “automação com um toque humano”, que não eram fáceis de entender e imaginar para outras empresas e outras nações desenvolvidas; e nós colocamos eles em prática enfatizando estes conceitos. Era natural que o Sistema Toyota de Produção fosse difícil de entender.


Comentário: as melhores, mais completas e mais claras explicações sobre o que deveríamos buscar e com que espírito estão nas obras e contribuições dos originadores japoneses das ideias e de outros conterrâneos. Infelizmente, a maioria esmagadora dessas informações existe apenas em inglês e por um preço geralmente inacessível. Nossa opção para aprender acaba sendo as interpretações da comunidade de autores ocidentais do Lean, que não são as mais ideais. Ao longo das décadas, muitos detalhes ficaram pelo caminho, e como na brincadeira do telefone sem fio, o sentido da mensagem se perdeu. Os melhores e mais claros livros que eu tenho sobre o assunto são, não por coincidência, escritos por autores japoneses, e são bem antigos.


Recentemente, ouvimos que as pessoas geralmente dizem que nosso segredo é o Sistema Toyota de Produção e seu meio de operação chamado “Kanban”. Muitas pessoas direta ou indiretamente entram em contato conosco para ver o modo de fabricar da Toyota. O interesse não se limita ao pessoal de indústrias, mas também professores que ensinam controle da produção e consultores de gestão.

Estamos felizes e agradecidos que tantas pessoas estão interessadas no Sistema Toyota de Produção.

Entretanto, conforme nosso sistema chamou a atenção e muitas indústrias domésticas nos estudam, nós ouvimos que algumas pessoas entendem de forma incorreta e outras abusam do sistema ao escolher apenas as partes que lhes agradam.


Comentário: melhorar de forma constante a produtividade com o kaizen exige mudanças drásticas, erros, aprendizado orgânico, e a maioria dos gestores foi ensinada pela teoria e prática a odiar tudo isso. Para se defender do processo de mudança, pegam aquilo que mais lhes agrada e que não exige um alto comprometimento e adicionam ao modo tradicional de pensar e fazer gestão. Contribuindo ainda mais com o problema, desde a época de Taylor, temos uma categoria de consultores que optam por servir aos gestores o que eles querem, e não o que precisam.


Um exemplo típico disso é o sistema “Kanban”.

De forma intrínseca, o “Kanban” é apenas um meio para operar o Sistema Toyota de Produção. Você não pode esperar que a produtividade melhore apenas ao adotar o “Kanban”. Além disso, o Sistema Toyota de Produção não tem a intenção e nem é compatível com a noção de “oprimir fornecedores” com o propósito de levar vantagem.


Comentário: por não se interessarem pelo modo de pensar e gerenciar, mas apenas pelas práticas e ferramentas, as empresas passaram a transferir seus estoques para os fornecedores e exigirem entregas Just-in-Time. O resultado são fornecedores sofrendo com aumento de custos enquanto a empresa cliente leva vantagem. Isso viola o princípio do Respeito pelas Pessoas.


Dessa forma, eu escrevi este livro porque eu desejo avidamente que as pessoas entendam e implementem o Sistema Toyota de Produção corretamente. Eu quero que muitas pessoas entendam sobre o que ele é.


Comentário: a maioria prefere aprender superficialmente, infelizmente, e criar suas próprias aberrações para tentar preencher os espaços vazios na compreensão. Outros, fazem isso pela conveniência e facilidade de ganhar dinheiro com qualquer promessa de aumento de produtividade.


Com a esperança de produzir entendimento correto, este livro coloca ênfase no modo de pensar: portanto, não inclui muitos exemplos específicos de implementação. Eu peço aos leitores que sejam compreensivos em relação a isso.


Comentário: experimentar, errar, refletir, tentar novamente, criando as próprias soluções com base no modo de pensar é o ideal para aprender e praticar o kaizen. Infelizmente, não é o que somos incentivados a fazer na maioria das empresas. Elas preferem a abordagem mecânica de implementar ferramentas, aprender soluções específicas para seus negócios em cursos de Lean Office, Lean Healthcare, ao invés do benefício robusto que a aprendizagem orgânica cria para o longo prazo.


Este livro não contém nenhuma defesa ou explicações sobre as críticas de algumas pessoas por causa de seu entendimento distorcido do Sistema Toyota de Produção. Eu acredito fortemente que todas as coisas no mundo serão provadas pela história.

Março, 1978

Taiichi Ohno.


Comentário: na pandemia do COVID-19, Lean e Just-in-Time foram severamente criticados na mídia (geralmente por quem que não tem conhecimento sobre o assunto), justamente pela falta de compromisso das empresas em entender corretamente a ideia e a estrutura necessária para praticá-la. Um erro, por exemplo, é tentar praticar o Just-in-Time, operando com menos estoques, quando seus fornecedores estão do outro lado do mundo, por exemplo, na China, enquanto você está aqui no Brasil.


E aí? Gostou de conhecer mais esse pedaço rico da história? Então não esqueça de dividir esse conhecimento com todos aqueles que você sabe que também vão amar aumentar um pouco a sabedoria do mundo sobre o kaizen.

Um grande abraço, e até a próxima!

  • dezembro 11, 2020